amores expresos, blog DO CUENCA

Tuesday, May 15, 2007

Encaixotado

Aconteceu sem planejamento. Depois de um dia cheio de aventuras em Daiba, baía futurista de Tóquio (escreverei mais sobre o lugar, que vai entrar na minha história), encontrei com um amigo de amigo chamado Ikutaro no “8 bit cafe”, em Shunjuku, onde ele seria o DJ da noite. Penei, como sempre, para achar o bar, um quinto andar sem placa.

Lá dentro, pelas prateleiras e mesas, videogames antigos e centenas de fitas originais, todas com no mínimo quinze anos de idade. E também bonecos de plásticos e mangás japoneses de todo o tipo. Todos se conheciam no bar, e acabei entrando no papo. Bebi certo tipo de cachaça feita a partir de sakê e acabei perdendo o trem.

O trem pára de passar às 0:30 e volta às 5:30. Voltar para casa de táxi é caríssimo, o que faz com que muita gente espere a reabertura da estação. Eu não tinha dinheiro para o táxi. E tampouco queria ficar acordado, exausto que estava de um dia que começou cedo, cheio de aventuras etc.

Desesperado de sono, saio pelas avenidas iluminadas de Kabukicho. É uma da manhã e eu procuro por um hotel cápsula.

Antes de vir para cá, imaginava tentar a experiência. Depois que vi as fachadas, desisti. Mas a verdade é que agora me sinto como se estivesse desaparecendo. Não tenho medo. Acho o prédio, velho e acabado como eu naquela noite, depois de quinze minutos de desorientação.

Ignoro a advertência ilustrada sobre a proibição de homens tatuados e bêbados – sou um deles – e entro. Subo dois lances de escada e chego à recepção, onde tiro os sapatos e assino meu nome. Recebo uma chave (3021), um roupão e duas toalhas, assim como breves instruções em japonês. Vou ao vestiário e troco de roupa.

Antes de (tentar) dormir, exploro os corredores lúgubres e estranhamente iluminados do hotel-cápsula. Para quem não sabe, uma cápsula é uma gaveta de fibra de vidro. Você dorme na gaveta, enquanto outros dormem na gaveta abaixo ou acima. Cada corredor tem umas vinte gavetas por parede, duas fileiras de dez, uma sobre a outra.

Pelos meus cálculos, aqui devem ter umas 400 gavetas.

Nos banheiros coletivos cheirando a cigarro, velhos japoneses assoam o nariz daquele jeito que só velhos japoneses conseguem assoar o nariz.

Como eu, imagino que a maioria desses homens tristes e vestidos em roupões de pano gasto deve ter perdido seu trem.

Reúno coragem e resolvo procurar minha cápsula. Ela fica no terceiro andar (são cinco). Para minha sorte – ou azar, não sei – minha gaveta fica na altura do chão. Acima dela, alguém dorme. E também no andar de cima. No andar de baixo. E nos lados.

Nesse hotel cápsula, as gavetas não tem porta, apenas uma pequena cortina de bambu que, além de luz, deixa entrar barulho. Privacidade não há. A abertura por onde você entra tem cerca de 50 cm de altura e largura. Lá dentro, é impossível ficar de joelhos, muito menos de pé. Dentro desse retângulo exíguo, não consigo me virar ou esticar os pés direito. A estrutura de fibra comporta um pequeno monitor de tv, alimentado por moedas, e um controle lateral de rádio e luz. Procuro por um ventilador ou ar-condicionado, mas não há. Faz calor dentro do caixão.

Durmo um sono de seis horas cheio de sobressaltos (acordo toda vez que alguém pisa no corredor) e tenho sonhos bizarros (um capítulo à parte dessa viagem). Entre outras coisas, sonho com um incêndio num hotel cápsula, onde, fugindo, encontro com o Chico Buarque na calçada, e ele muito calmamente me diz “certa vez fiquei num desses, na Guatemala” (?!?!), e também sonho longo episódio sobre um gato carregando um pássaro entre as mandíbulas. Penas voam, o pássaro amarelo se debate e chora (?!), eles entram dentro do meu quarto e me perseguem por elevadores. Dentro do sonho, pego meu caderno de sonhos dentro do sonho e anoto o sonho dentro do sonho. Isso é uma recorrência, aliás, e talvez a melhor literatura que jamais produzirei.

Às nove, uma mensagem ressoa dentro da cápsula. Não entendo do que se trata e volto a dormir. Às nove e meia, nova mensagem, e o eco de música clássica pelos corredores. Um homem abre a cortina da minha cápsula abruptamente.

O tempo acabou.

No vestiário, os sararimen e suas feições amarfanhadas voltam a mostrar alguma dignidade quando retomam a posse dos seus ternos e gravatas.

Quando saio para encarar com o corpo moído a manhã quente de Tóquio, ganho um cupom de desconto para uma próxima vez que, espero, jamais acontecerá.