amores expresos, blog DO CUENCA

Sunday, May 20, 2007

Mirando no sol vermelho

Numa transversal da estação de Ikebukuro desço dois lances de escada por um corredor de bambu e chego a um restaurante. Tiro os sapatos e calço sandálias de madeira sobre o chão de pedra. Uma garçonete me deseja boas vindas e me faz perguntas como se eu pudesse compreendê-la. Apenas agradeço e sigo o caminho sinuoso até uma das salas no final. Junto à mesa, sento no chão com os joelhos dobrados. Em dez segundos meus pés ficam dormentes.

Os outros parecem confortáveis.

Formam um grupo de, como dizem, “sararimen” – trabalhadores assalariados japoneses, desses que vejo em todo o lugar, o tempo todo, andando de terno e gravata num passo apressado. Estendo a mão, gesto que recebem com surpresa e risos de constrangimento. Apresentações feitas, lamento por não ter um cartão de visita. Eles têm, e me estendem cerimoniosamente, segurando o pedaço de papel com as duas mãos.

Muito do costume do cartão tem a ver com linguagem e tratamento social – dependendo da função hierárquica de cada um dentro de suas corporações, a forma de se dirigir ao outro e os pronomes de tratamento mudam completamente, assim como a construção das frases e o ângulo da inclinação das costas quando se despedem.

No entanto, a linguagem não reflete exatamente o que se pensa. Não que a polidez não seja sincera. Mas aqui se separa o que se pensa do que se diz, de uma forma que talvez um brasileiro não esteja acostumado a lidar. Ao contrário do Brasil, onde todos, do taxista ao garçom, passando pelo santo padre, falam sobre qualquer assunto emitindo fortes e instantâneas opiniões, por aqui não é tão fácil saber o que um japonês pensa sobre qualquer coisa.

Normalmente perguntas genéricas são encaradas quase como se fossem de cunho íntimo, e o sujeito pede tempo para pensar. E depois, aos poucos, fala com cautela. É como se existissem dois tipos de sujeito: o íntimo e o social. E talvez mais: vários tipos de acordo e dança social, várias relações de intimidade em diferentes níveis. Acredito que, para fazer a travessia, o sarariman típico precisa mudar uma série de configurações mentais. Mas depois disso, especialmente se estiver bebendo saquê, a coisa muda de figura e o assunto pode descambar. Derrubadas as pontes dentro de si, são incrivelmente mais desinibidos e liberais do que nós para falar de suas intimidades a um estrangeiro, que, inicialmente, receberam com timidez e desconfiança.

É preciso lembrar que o Japão só deixou de ser um país feudal na segunda metade do século XIX. É preciso lembrar que, até 1945, o imperador era tido pelo povo como uma divindade - literalmente. O país entrou no mundo dito “moderno” sem adquirir os mesmos valores e moldes de pensamento ocidentais hegemônicos no planeta – ou que foram hegemônicos até o século XX. Acredito que esse país é tão complexo para nós justamente pelo contraste entre um modo de pensar ancestral e muito particular, e a importação (e aperfeiçoamento) de hábitos e tecnologias do exterior. Acho que essa contradição está presente o tempo inteiro, em cada aspecto da vida no Japão.

(Antes da chegada da esquadra norte-americana do Comandante Perry, em 1853, o Japão ficou duzentos e cinqüenta anos sendo um país completamente fechado ao comércio exterior. Simplesmente não entrava nada, ou ninguém. E, se saísse, não podia voltar. Daí, pode-se imaginar a rapidez e eficiência com que essa sociedade conseguiu absorver inovações do exterior – e nem começarei a escrever sobre o pós-guerra.)

O interessante disso tudo, e aí nem sei mais onde queria chegar quando comecei a contar sobre meu encontro com os “sararimen”, é que fazem esse tipo de movimento sem, em nenhum momento, deixarem de ser essencialmente japoneses. Por mais que alguém possa reclamar da “ocidentalização” excessiva do país, eu diria que aqui é Japão o tempo todo. Até Mickey Mouse e pub irlandês no Japão tem cara e jeito de japonês.

Importaram o capitalismo, mas fizeram dele um capitalismo japonês, com amarras que, de certa forma, acabaram erguendo uma sociedade muito menos desigual do que a de seus pares ocidentais. Importaram o telégrafo, o rádio, a televisão, o computador e a fotografia, levando essas tecnologias ao máximo da sofisticação. E, por mais que em lugares como Ginza, Omotesando ou Daikanyama queiram emular Paris, eles acabam também aperfeiçoando a cultura européia, transformando-a em outra coisa, muito mais elegante e estilizada: japonesa.

(O Globo/Megazine - 15.05.2007)

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Saindo do restaurante em Ikebukuro: